31.10.12

Fernando Namora (Aula de anatomia)





Por detrás dos que desnudavam o relevo sanguíneo dos músculos, abrindo rasgões na pele esverdeada, outros bisturis e outras pinças esperavam a sua vez de ir mais longe, a desvendar planos inacessíveis, bainhas, cordões, tecidos duros ou adiposos, todos eles de uma viscosidade abjecta.

Deixava-se um corpo humano esclarecido até à sátira.

Um braço, um crânio, um ventre estropiado – destroços que a carroça do lixo iria despejar mais tarde.

As batas manchavam-se do sebo das mesas, impregnavam-se do cheiro da carne decomposta, o enjoo empalidecia as faces dos mais sensíveis.

O assistente ia e vinha entre as mesas anatómicas, de cabelos eriçados como se cada passada o aproximasse de uma briga, e os resmungos que lhe escorriam do infatigável cigarro pareciam triturados pelas maxilas.



- FERNANDO NAMORA, Fogo na Noite Escura, 1.ª-I.


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