31.3.18

Pedro da Silveira (Meditação sobre a eternidade)






MEDITAÇÃO SOBRE A ETERNIDADE



Das árvores que plantei
nenhuma já me pertence
e de quase todas nem comi
ou sequer vi os frutos.
Sempre soube que devemos morrer
E penso que é melhor
não se saber quando nem como.
E quanto ao que deixámos,
não se recorde de quem foi.
Que só assim somos eternos.


Pedro da Silveira


.

30.3.18

Jorge Boccanera (Suma)




SUMA


Los días no contaban para mí,
bastaba la palabra.
Yo escuchaba en cuclillas como alguna palabra
conversaba con otra.
No contaban los días.
Pero extravié palabras y los días me siguieron
de cerca con sus largos abrigos.
Yo iba mirando el suelo.
“Ese no cuenta el cuento”, vaticinaron unos.
Yo no escuchaba a nadie, yo contaba con ellas.
Los días fueron como trapos mojados en los pies.
Habité días feroces porque perdí palabras.
Eran contadas y eran, al fin, las que contaban.
El tiempo es implacable.
El que pierde palabras tiene los días contados.


Jorge Boccanera

[Triplo V]




Os dias para mim não contavam,
bastava a palavra.
Eu escutava de cócoras como uma palavra
conversava com outra.
Nem contavam os dias.
Mas extraviei palavras e os dias seguiram-me
de perto com seus longos abrigos.
E eu com os olhos no chão.
‘Esse não conta um conto’,
vaticinaram alguns.
Eu não escutava ninguém, eu contava com elas.
Os dias vinham como trapos molhados nos pés,
dias ferozes que eu habitei por perder palavras.
Contadas, as palavras, afinal eram elas que contavam.
Porque o tempo é implacável,
quem perde palavras tem os dias contados.

(Trad. A.M.)

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29.3.18

Jorge Ampuero (Crise)






CRISIS



El problema no es
la jaula o el pájaro
o el pájaro
dentro
de la jaula
el problema es
la jaula
dentro
del pájaro.

Jorge Ampuero

 .

27.3.18

Carlos de Oliveira (Amanhecer)





(Amanhecer)


O primeiro alvor da madrugada na janela do escritório, um começo de luz apenas, ainda por fixar no contorno do mundo.

Como a mulher se tivesse recusado a deixá-lo entrar no quarto, passara ali a noite, encolhido no meiple de couro, com a samarra pelas pernas.

Não conseguira adormecer, mas alcançara do excesso das palavras e do álcool um pouco de repouso.
No entanto doía-lhe a cabeça.

A boca seca, amarga.

Levantar-se e abrir a janela.

Uma golada de água, a pureza fria da madrugada.

A cinza da luz amontoava-se nas vidraças, mas não era possível prever se o dia chegaria ou não.

Quando começava a clarear um pouco mais, a lufada de sombra varria a cinza da janela.

Um desejo irreprimível de cheirar os campos molhados.

Beber água, passar os dedos na casca rugosa dum pinheiro, encharcar-se de orvalho. (XV)

CARLOS DE OLIVEIRA
Uma Abelha na Chuva
(1953)


.

25.3.18

Joaquín Giannuzi (Aniversário-II)






CUMPLEAÑOS



He cerrado la puerta de mi padre.
Finalmente lo supe, al amanecer
de este cumpleaños en que te sobrevivo.
Pero aún con la difícil respiración
al borde de la cama y sombrías
opciones por delante, puedo entender
que tú y todos los muertos han perdido
y que vivir es el único prestigio que cubre la tierra.
Entonces, todo lo que es está bien.
Por alguna razón me incorporo; jadeando,
vacío tu rostro hacia la pesada oscuridad
y tengo tu misma manera de torcer la boca
al paso de la puntada por el pecho anginoso.


Joaquín Giannuzi





Encostei a porta do meu pai.
E soube finalmente, no dealbar
deste aniversário em que te sobrevivo.
Mesmo respirando a custo, sentado
na beira da cama e com bem sombrias
opções pela frente, sou capaz de entender
aquilo que tu e os mortos todos perderam,
e que viver é o maior regalo que existe
à superfície da terra.
Por conseguinte, tudo o que é bem está.
Por alguma razão me endireito; a impar,
empurro o teu rosto para o escuro pesado
e tenho como tu o mesmo modo de torcer a cara,
picado pela pontada da angina do peito.


(Trad. A.M.)

__________________

O poema já estava aqui: Aniversário
Mas nova tradução, ignorando a primeira por inadvertência, deu em novo resultado, diferente do anterior.

.

23.3.18

Joan Margarit (Incitação à posteridade)






INCITACIÓN A LA POSTERIDAD




Si ya no puedes escribir ni amar,
y buscas un lugar para morir,
basta una habitación de hotel barato.
Manda que no te pasen los avisos,
paga dos noches por adelantado.
Mezclados con alcohol, has de servirte,
de Vesperax o Tofranil, tres gramos,
y, en caso de cianuro, sólo un cuarto.
Muerto de lujo, alcanzarás el rango
de poeta maldito.
Deja escrita una nota desolada.
Si es posible, un poema inacabado.
Al vacío escenario, para ti,
llegará un foco: la posteridad.



JOAN MARGARIT
Los motivos del lobo
(1993)







Se já não podes escrever nem amar,
e buscas um lugar para morrer,
basta um quarto dum hotel barato.
Diz para não te darem recados,
paga duas noites adiantadas.
Toma, misturado com álcool,
três gramas de Vesperax ou Tofranil,
e no caso de cianeto só um quarto.
Morto de luxo, atingirás a categoria
de poeta maldito.
Deixa escrita uma nota desolada,
se possível, um poema inacabado.
No vazio cenário, para ti,
aí está um foco: a posteridade.

(Trad. A.M.)

,

21.3.18

Miguel Martins (Quem acha)





Quem acha que a vida é para levar a sério
deve andar convencido de que a morte é a
brincar.


Miguel Martins

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19.3.18

Javier Salvago (Um pouco mais sábios)





UN POCO MÁS SABIOS,
UN POCO MÁS CIEGOS



Cuando uno ya no es joven, se convence
de que el diablo sabe más por viejo,
y admite que los años nos enseñan
a distinguir la realidad del sueño.
Y, acaso, no. Quizá la vida sólo
se nos muestra una vez —cuando tenemos
ojos para apreciarla— y luego vamos
olvidando su rostro y su secreto.


Javier Salvago




Quando já não somos jovens, pensamos
que o diabo é sabido por ser velho,
e julgamos que os anos ensinam
a distinguir a realidade do sonho.
E talvez não. A vida, porventura,
aparece-nos só uma vez - quando temos
olhos para apreciá-la; depois, vamos-lhe
esquecendo o rosto e o segredo.

(Trad. A.M.)


> Outra versão: Do trapézio (L.P.)

.

18.3.18

Jaime Sabines (Da alegria)






DE LA ILUSIÓN



Escribiste en la tabla de mi corazón:
deseja.
Y yo anduve días y días
loco y aromado y triste.

Jaime Sabines




Escreveste-me na tábua do peito:
deseja.
E eu andei dias e dias
louco, fragrante e triste.

(Trad. A.M.)

.

17.3.18

Ana Margarida de Carvalho (A verdade magoa)




(A verdade magoa)


Nunca sabemos o que sabemos, onde começa a nossa recordação e acaba a dos outros, o que lembramos hoje é sempre o que da última vez lembrámos, são falsas todas as memórias.

E tudo se mistura, um sonho, um facto, uma recordação, vários pontos acrescentados que formam uma constelação defeituosa – tudo feito da mesma matéria, uma esponja, cheia de lapsos e interstícios, e às vezes quando se espreme sai uma gota a custo, outras, um jorro torrencial.

Eugénia não era pessoa de andar a pesar ovos de mosca em balança de aranha.

Entre a verdade e a verosimilhança, escolhia sem hesitar a verosimilhança.

Entre o que ocorrera e o que poderia ter ocorrido, optava pela segunda hipótese, tendo em conta que o excepcional encontra mais fácil e acolhedora morada na realidade do que na ficção, em que muito rapidamente ruem os alicerces do precário abrigo do que é apenas verosímil.

Além do mais, não valia a pena ocultar: a verdade magoa.

A verdade pode muito bem estar enganada.

É só uma questão de tempo.

E de a manter avisada.


ANA MARGARIDA CARVALHO
Que importa a fúria do mar
(2013)


.

16.3.18

Jacob Iglesias (5-Setermbro-2008)





5 -SEPTIEMBRE-2008



Catorce años después,
cuanto queda de mi padre es una sucesión
de imágenes
inconexas, y cada vez más huecos,
y algunos recuerdos minuciosos,
sobre todo de aquellos últimos meses.
Me ha costado todos estos años aprender
que cuando la memoria se convierte
en un rastro que conduce a ninguna parte,
sólo puede aliviarnos
esta liturgia de acercarnos al cementerio,
limpiar de tierra y excrementos de pájaro
la lápida, maldecir que haya más líquenes
en la inscripción y arrancar los hierbajos
que han ido creciendo.
Atar luego a la cruz unas flores de plástico
y dejar tumbado en la tierra
un ramo de claveles. Y rezar,
sin devoción, pero por si acaso,
un padrenuestro
por la vida eterna en que él confiaba.


Jacob Iglesias





Catorze anos depois,
tudo o que resta de meu pai é uma sucessão
de imagens
desconexas, espaços vazios
e algumas lembranças minuciosas,
mais daqueles últimos meses.
Custou-me aprender nestes anos todos
que quando a memória se converte
num rasto que não leva a lado nenhum,
só nos alivia
esta liturgia de passar no cemitério,
limpar a lápide das cagadelas dos pássaros,
praguejar de haver mais líquenes
na inscrição e arrancar os argalhos
que foram crescendo.
Prender depois na cruz umas flores de plástico
e deixar na terra caído
um ramo de cravos. E rezar,
sem devoção, mas por cautela,
um padre-nosso
pela vida eterna em que ele confiava.

(Trad. A.M.)


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15.3.18

Mario Quintana (O tempo)






O TEMPO



A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
     Quando se vê, já são seis horas!
     Quando se vê, já é sexta-feira!
     Quando se vê, já é natal...
     Quando se vê, já terminou o ano...
     Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
     Quando se vê passaram 50 anos!
     Agora é tarde demais para ser reprovado...
     Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
     Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas...
     Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo...
     E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
     Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
     A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.


               Mario Quintana

               [Conto Brasileiro]


.

14.3.18

Gloria Fuertes (A vida é uma hora)






LA VIDA ES UNA HORA



La vida es una hora,
apenas te da tiempo a amarlo todo,
a verlo todo.
La vida sabe a musgo,
sabe a poco la vida si no tienes
más manos en las manos que te dieron.
Al final escogemos un lugar peligroso,
un pretil, una vía,
la punta de un puñal donde pasar la noche.

Gloria Fuertes






A vida é uma hora,
mal nos dá tempo de amar tudo,
de ver tudo.
A vida sabe a musgo,
sabe a pouco a vida se não tiveres
mais mãos nas mãos que te deram.
No fim escolhemos um sítio perigoso,
um parapeito, uma via,
a ponta de um punhal onde passar a noite.

(Trad. A.M.)


.

13.3.18

Fernando Luis Chivite (Anti-hino)






ANTIHIMNO



No les verás el rostro porque no tienen rostro
no escucharás que llegan ni música ni látigos
no sentirás la sangre debajo de tu ropa

no sentirás el odio la vergüenza siquiera
debajo de tu ropa.

Fernando Luis Chivite





Não lhes verás o rosto porque não têm rosto
não ouvirás nem música nem açoites
não sentirás o teu sangue por baixo da roupa

não sentirás o ódio sequer a vergonha
por baixo da roupa.

(Trad. A.M.)

.

12.3.18

Carlos de Oliveira (Janela)






(Janela)


Uma cabaça de vinagre despejada, os resíduos ácidos que escorrem com dificuldade pelo interior do bojo até pingarem do gargalo, espessos, vagarosos; a mão na espuma que lhe azedava os lábios; boiar numa onda incerta de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabeça tombada para fora da janela, virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço; voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte, nas pálpebras fechadas, foi-se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortada ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grande pureza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras.

Agora não. (XII)

CARLOS DE OLIVEIRA
Uma Abelha na Chuva
(1953)

.

11.3.18

Ernesto Pérez Vallejo (Eu chamo-me Ernesto)






Me llamo Ernesto.
Nadie me llama Ernesto.
Nadie me llama.

Nadie no es una persona.
Nadie es nada.
Cero.
Folio en blanco. 
Teléfono sin agenda.
Amor sin wifi.

He amado a casi todas las mujeres
que se han cruzado conmigo. 
Ellas no lo saben.
En su ignorancia salvo el ridículo.

Soy de los que se caen 
y hacen como que están buscando una moneda.
Prefiero que me tachen de pobre
que de vértigo.

Prefiero que me tachen.

Que nadie me llame.
Nadie de ella.

Ojalá fueras nadie.

Tú, que te crees Alma,
que te llamo Alma,
que te gritan rubia en los pasos de peatones,
que te silban a Vivaldi en la boca del metro.

Ojala yo fuera la boca de un metro.
Que tu boca estuviera a un metro de mi boca. 
Que entraras y salieras cada mañana
sin reconocer que mi lengua
te lame los lunes más pesados de la nuca.

Ojalá fuera lunes.
Y no me llamara Ernesto.
Y no amara a todas las mujeres
que se cruzan por mi vida.

Que hubiera una moneda tras la caída.
Que saliera cara. 
Tu cara.
Que pensaran todos que he tenido suerte
y no vértigo.

Y quedarme en el suelo
hasta que nadie me levante
y me llame por mi nombre.
Una vez.

Pero nadie de todo.
Del total y de rubia.
Y de Vivaldi
Y de boca de metro.
Y de Alma.
Sobre todo de Alma.

Ernesto Pérez Vallejo





Eu chamo-me Ernesto.
Ninguém me chama Ernesto.
Ninguém me chama.

Ninguém não é uma pessoa.
Ninguém é nada.
Zero.
Folha em branco.
Telefone sem agenda.
Amor sem wi-fi.

Amei quase as mulheres todas
que se cruzaram comigo.
Sem elas saberem,
no que me poupo ao ridículo.

Eu sou daqueles que caem
e fazem que estão à procura de uma moeda.
Prefiro que me acoimem de pobre
a que me acusem de vertigem.

Prefiro que me acoimem.

Que ninguém me chame.
Ninguém dela.

Quem dera tu fosses ninguém.

Tu, que te crês Alma,
que eu chamo Alma,
que os outros gritam loira nas passadeiras de peões,
que te assobiam Vivaldi na boca do metro.

Fosse eu a boca de um metro.
Ou tua boca estivesse a um metro da minha boca.
Ou tu entrasses e saísses de manhã
sem reconhecer-me a língua
a lamber-te as segundas mais pesadas da nuca.

Oxalá fosse segunda.
E eu não me chamasse Ernesto.
E não amasse as mulheres todas
que se me atravessam na via.

Que houvesse mesmo uma moeda quando caio.
E fosse cara.
A tua cara.
E todos pensassem que eu tive sorte, sim,
não vertigem.

E ficasse pelo chão
até ninguém me levantar
e me chamar pelo nome.
Uma vez.

Mas ninguém de todo.
De todos e da loira.
E de Vivaldi.
E da boca do metro.
E de Alma.
De Alma, sobretudo.


(Trad. A.M.)

.

10.3.18

Eloy Sánchez Rosillo (A fonte escondida)






LA ESCONDIDA FUENTE



Cuando el dolor te venza y te derrumbe y des
con tus huesos en una noche ciega,
no pienses ante todo en escapar: indaga
en el hondo misterio que supone
que ese dolor exista, igual que existen
el pájaro y la flor, la hormiga o las estrellas.
Y escarba en sus escorias enigmáticas
con corazón dispuesto y manos que se entreguen
a buscar la verdad sin titubeos.
Escarba en tu dolor hasta llegar al fondo
de la tiniebla y del espanto. Allí
verás sin duda el rostro de la muerte.
Pero no desfallezcas. Si tu espíritu
no se rinde y prosigue,
tal vez descubras luego,
bajo la tierra estéril de las devastaciones,
una escondida fuente. De ella brota
una agua fresca y viva que es también una luz,
la más intensa luz, la luz más pura.


Eloy Sánchez Rosillo






Quando a dor te vencer e derrubar e deres
com os ossos numa noite fechada,
não penses antes de mais em fugir: indaga
no profundo mistério que está por trás dessa dor,
por trás do pássaro e da flor, da formiga ou das estrelas.
E escava na escória enigmática
com decidido coração e mãos firmes,
dispostas à busca da verdade.
Escava na tua dor até ao fundo
da treva e do espanto. Aí
verás por certo o rosto da morte.
Mas não desfaleças, se não se render
teu espírito e persistir,
talvez descubras depois,
sob a terra estéril devastada,
uma fonte escondida. Dela brota
uma água fresca e viva que é também uma luz,
a mais intensa luz, a luz mais pura.

(Trad. A.M.)


.

9.3.18

Mário Cesariny (Um canto telegráfico)






UM CANTO TELEGRÁFICO


   (...)
Apetece contar uma história tão estranha que
as pessoas saiam aos tropeções de casa
apetece anunciar com voz fanhosa
cronologicamente cruelmente
todas as horas do pasmo
todos os dias do calendário do medo
todas as terças-feiras da angústia de haver rosas
todo o fumo e toda a raiva de um relógio de sol
Tomaram-nos o pulso e ficámos febris
com o amor que não há a inundar-nos a cara
este amor não esquece este amor
não se esquece há um rato
na tua camisa o céu brilha o céu está
os amantes retomam os seus quartos
num plácido e extenuante recolhimento gráfico
mas não basta encostarmo-nos à parede
para que tudo ressurja e vestir de novo as fardas
a imaginação ainda não é
para servir de pedreiro A Imaginação
as radiosas salas superiores
através da cidade nos jardins nas gárgulas
abre-se o leque das mil cenas celestes
com o homem na ponte cor de rosa velho
as mãos na água a cabeça no mar

Mário Cesariny

.

8.3.18

Darío Jaramillo Agudelo (As palavras não são as coisas)






Las palabras no son las cosas pero las palabras son la cosa.                        
Las palabras no son las cosas pero cambian las cosas, a veces
     cambian las cosas.
Las palabras son sólo palabras, pero las cosas son algo más que
     las cosas.
Las cosas no son palabras pero las palabras son cosas.
Las cosas son cosas o son palabras pero las palabras son sólo
     palabras.
Y son la cosa.


Darío Jaramillo Agudelo






As palavras não são as coisas, mas as palavras são a coisa.
As palavras não são as coisas, mas mudam as coisas,
               às vezes mudam as coisas.
As palavras são só palavras, mas as coisas são algo mais do
               que as coisas.
As coisas não são palavras, mas as palavras são coisas.
As coisas ou são coisas ou são palavras, mas as palavras
               são só palavras.
E são a coisa.

(Trad. A. M.)


.

7.3.18

Ana Margarida de Carvalho (Partida)






(Partida)


É um clássico da descrição dos dias das partidas.

Diz-se que estava um dia de chuva oblíqua que fazia os homens vergarem a cabeça e caminharem com o tronco inclinado, ombros alçados, a protegerem o pescoço.

Ou então que estava uma bela e radiosa manhã que contrastava com o negrume envergado pela alma.

Ou então um dia abafado, com nuvens baixas e pastosas, que rimava com o clima de opressão que se abatia sobre os desterrados.

No dia em que Joaquim embarcou no navio Luanda no Cais da Rocha do Conde de Óbidos estava apenas um dia.

Os cais são saudades de pedra, diz-se, e estava deserto nessa manhã (afinal sempre se anuncia o estado ainda matinal desse dia – é inevitável).

Ninguém fala, as palavras são ingratas para uma ocasião em que a irreversibilidade de uma ida sem volta é a hipótese mais consistente.

As palavras arranham a garganta de quem as diz, poluem os ouvidos de quem as ouve.

Como num funeral.

De maneira que iam calados os homens e em fila indiana, a subirem o passadiço para o navio.

Sem qualquer banda sonora intradiegética, a não ser as vozes de comando e os miados das gaivotas.

Parece que, para além do intercâmbio vocabular, estas ensinam felinos a voar.

Mas chega de preambular, que vão pesarosos os homens, é caso para isso, e há, de súbito, um grito de mulher que não constava do guião. (11)


ANA MARGARIDA CARVALHO

Que importa a fúria do mar
(2013)


.

6.3.18

Aldo Luis Novelli (Assombro)





ASOMBRO



escribir un poema
que provoque un asombro vital
y el lector
quede pasmado
ante su lectura.

escribir un poema
como construir una máquina del tiempo
que deshaga todo presente/
como crear un cielo zafiro
galopado por unicornios transparentes
que con sus cuernos
formen una constelación de símbolos secretos.

escribir un poema
que provoque un asombro vital
y el poeta
quede pasmado
ante su escritura.

escribir un poema vital
y el asombro
lo haga interminable.

escribir un asombro
que nunca será un poema.


Aldo Luis Novelli




escrever um poema
que provoque um assombro vital
e o leitor
fique pasmado
ante a leitura

escrever um poema
como construir uma máquina do tempo
que desfaça o presente
como criar um céu de safira
cruzado por unicórnios transparentes
que façam com os cornos
uma constelação de símbolos
secretos.

escrever um poema
 que provoque
um assombro vital
e o poeta
fique pasmado
diante da escrita.

escrever um poema vital
e que o assombro
o faça interminável.

escrever um assombro
que nunca será um poema.



(Trad. A.M.)

.

5.3.18

Maria do Rosário Pedreira (Mãe, eu quero ir-me)






Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada                            
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.


Maria do Rosário Pedreira

.

4.3.18

Ana Pérez Cañamares (Há palavras que se fecham)






Hay palabras que se van cerrando                                         
como bares viejos comprados
para abrir zapaterías.

Palabras que nunca más pronunciaré
con naturalidad. Palabras que
para siempre sólo serán citas.

Nunca viví por dentro la palabra
abuelo. Abuelo era el título de un cuento
escrito en otro idioma.

Madre fue una palabra temida y adorada
un tótem levantado en medio de La Mancha.

Padre era un pasillo en el que nunca
me detuve por mucho tiempo.

Palabras cerradas.
Juguetes de la infancia que ya
no se fabrican.

ANA PÉREZ CAÑAMARES
Las sumas y los restos
(2013)





Há palavras que se vão fechando
como velhos bares comprados
para abrir sapatarias.

Palavras que não pronunciarei jamais
com naturalidade. Palavras que
serão sempre apenas citações.

A palavra avô nunca a vivi
por dentro. Avô era o título de um conto
escrito em outra língua.

Mãe, uma palavra temida e adorada,
um totem erguido a meio da Mancha.

Pai era um corredor onde nunca
me detive por  muito tempo.

Palavras fechadas.
Brinquedos da  infância que
não se fabricam mais.

(Trad. A.M.)

____________________

Tradução duplicada, face a esta outra: Há palavras
Na verdade, duas traduções diferentes, por lapso de atenção, de momentos diferentes, como já aqui tem sucedido tantas vezes.
Mantêm-se ambas, por isso mesmo, apesar de a anterior parecer francamente melhor.


.

3.3.18

Carlos de Oliveira (O ruivo)






(O ruivo)


Quando estiou, partiram.

Anoitecera já de todo.

O ruivo tinha acendido a lanterna da charrete e o clarão batia na lombeira da égua lustrosa de suor e chuva.

O perfil do cocheiro arrancava-o da sombra a luz amarelada: o queixo espesso, o nariz correcto, a fronte não muito ampla mas firme.

De encontro à noite, parecia uma moeda de oiro.

O moço ia hirto, de olhos postos no caminho escalavrado que a lanterna abria a custo, e a tensão (a atenção) dava-lhe um rigor enérgico aos tendões do pescoço que o blusão de bombazina deixava a descoberto.

Ela fitava-o e não resistia à tentação de um paralelo com o homem mole e silencioso que levava ao lado. (IV)



CARLOS DE OLIVEIRA
Uma Abelha na Chuva
(1953)


.

2.3.18

Rodolfo Edwards (Eu escrevo)





YO ESCRIBO


                                                          
escribo
al correr de la pluma
las palabras
se acomodan solas
fuera de mi dominio
y después se escapan
de mis cuadernos
vagan por la calles
se esconden en los umbrales
se apilan en una esquina
hasta que viene un viento
y las deshace

y hay que empezar
todo de vuelta

Rodolfo Edwards




eu escrevo
ao correr da pena
as palavras
acomodam-se por elas
fora do meu controlo
e depois escapam-se
dos meus cadernos
vagam pelos becos
escondem-se nos portais
juntam-se numa esquina
até que vem um vento
e desfá-las

e há que começar
tudo de novo


(Trad. A.M.)

.

1.3.18

Manuel de Freitas (5010509001229)





5 010509 001229



É o que se chama um "higiénico": latas,
comida feita e embalada, whisky,
cerveja ou vinho (quando não os três).
Deve beber-lhe bem e mudar pelo menos
duas vezes por semana a areia do gato.
É tímido, inseguro e - por isso mesmo -
extremamente rápido a arrumar as compras.
Vai pagar outra vez com cartão. Hoje
parece mais triste, talvez por no seu íntimo
saber já que vai escrever um poema
sobre mim, mera ajudante de leitura
dos códigos fatais em que cada um se expõe.

Mas para quê tantas palavras? Bastava-lhe
ter dito que me chamo Isilda
e que a vida que tenho não presta. A dele,
suponho, não será muito mais feliz.
Escusava era de maçar a gente
com o que sofre ou deixa de sofrer.

A minha sabedoria é muda, desumana:
um dia enlouqueço ou fico para sempre presa
a um pesadelo sentado, com barras transparentes.


Manuel de Freitas



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